Direitos invisíveis: clínica de psicanálise democratiza acesso à saúde mental nas periferias

Quem cuida da saúde mental dos profissionais que se dedicam diariamente ao atendimento da população periférica em equipamentos públicos de saúde? Nesta reportagem, vamos conhecer a Clínica Periférica de Psicanálise, iniciativa que vem trabalhando para oferecer um espaço de escuta e acolhimento às pessoas que foram impactadas psicologicamente pela pandemia de covid-19, o novo coronavírus.

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Os agentes de saúde e assistência social tiveram suas rotinas de trabalho e vida pessoal transformadas com o avanço da pandemia de coronavírus nas periferias de São Paulo. Indispensáveis para o atendimento à população periférica, estes profissionais representam um dos grupos mais vulneráveis diante das consequências emocionais e psicológicas causadas pelas más condições de trabalho presente nos serviços públicos de saúde, como hospitais, postos de saúde e unidades básicas de atendimento.

De acordo com dados divulgados pela Secretaria Municipal de Saúde, no final do mês de junho de 2020, mais de quatro mil agentes de saúde estavam afastados das suas funções trabalhistas com sintomas de covid-19. Desses profissionais, mais de dois mil foram confirmados com coronavírus e a outra metade apresentou síndrome gripal. Ao todo, 28 vieram a óbito.

Após a divulgação deste relatório, publicado em 17 de junho de 2020, e com a implantação do plano São Paulo, a estratégia do Governo do Estado para vencer a pandemia de coronavírus, a Secretaria Municipal de Saúde não revelou mais em seu site o número oficial de profissionais afastados do ambiente de trabalho.

Além das más condições de trabalho enfrentadas nos espaços públicos de saúde, os agentes de saúde foram surpreendidos pelo presidente Jair Bolsonaro, que vetou nesta semana o Projeto de Lei 1.826/2020, que garantia uma indenização aos profissionais que se tornaram incapacitados para o trabalho em decorrência da covid-19.

Atuante nas periferias da zona leste, a redutora de danos Márcia Lysllane Santos, 28, moradora de São Mateus, que começou sua carreira saindo de Alagoas e vindo estudar psicologia em São Paulo, faz parte do grupo de profissionais que estão sendo afetados psicologicamente pela pandemia. Atualmente, ela trabalha no CAPS AD III São Mateus, realizando ações de promoção à saúde emocional juntos aos moradores do território.

Ela conta que antes de desempenhar a sua função, foi necessário entender a estrutura do Estado para ter um senso crítico sobre esse campo de atuação. “Eu precisei passar por um processo muito longo de conscientização, compreender o Estado, as políticas públicas, o sistema que nos administra, tive que aprender a ler, escrever, construir um senso crítico”.

Ultimamente, Santos tem se assustado com a rotina de trabalho e os impactos que isso tem gerado na sua vida. “É assustador! Em muitos momentos só me resta chorar diante do medo que me consome em relação ao futuro. Ando extremamente preocupada”.

Ela ressalta que deveria ser prioridade às pessoas que estão na linha de frente ter o acompanhamento de um psicólogo. “É um turbilhão de informações, angústias trazida pela comunidade que acabamos internalizando e nós angustiando com tamanho sofrimento social. Muitas vezes, o sentimento de impotência toma conta e nos abala e acaba interferindo na nossa atuação”.

Diante dos últimos acontecimentos vivenciados pela psicóloga, ela afirma que uma mulher preta e nordestina, como ela não tem o tempo para sonhar. “Uma mulher, negra, nordestina, mãe solo de uma criança de oito anos, não tem tempo de pensar ou sonhar”.

Para a redutora de danos, ficar desde o começo da quarentena longe de seu filho para protegê-lo, é a situação de muitas mães e pais que estão se arriscando pelo território agora. “Sou mãe solteira, moro apenas eu e o meu filho, e ele no momento não se encontra comigo. No início de todo esse caos eu tomei a decisão de deixá-lo com o pai em Minas Gerais para protegê-lo, pois o medo de estar com o Covid-19 e transmitir para ele era muito grandes. Eu sinto muita saudade do meu filho, passamos muitas dificuldades, mas sempre juntos”, afirma ela.

“É possível desmistificar o cuidado com a saúde mental” 

Atentos a esse cenário, no lado leste da cidade de São Paulo, nasce uma parceria entre o Movimento Cultural Ermelino Matarazzo e a Clínica Psicanálise Periférica, com o projeto de atendimento online voltado a profissionais da saúde e assistência social das periferias que não conseguem arcar com os custos para realização de terapias.

Numa condição semelhante a da estudante de psicologia, Diego William de Faria Rennó, 34, nascido na cidade de Cruzeiro, interior de São Paulo, vive atualmente no Jabaquara, bairro da zona sul. Ele é um dos colaboradores da ação que desenvolveu o coletivo da Clínica Psicanálise Periférica, além disso, ele trabalha como psicólogo na região central da Luz, na área de proteção especial da Secretaria de Assistência Social, em um Centro de Acolhida Especial para idosos.

Ele é mais um profissional na linha de frente de atendimento a pessoas em situação de vulnerabilidade social que foram afetadas pela pandemia. “É difícil estar na linha de frente, apesar de ser psicólogo, uma profissão da saúde. Eu atuo na Assistência Social, onde difere muito a atuação e não se tem os mesmos holofotes e investimentos que a área da saúde tem. Então é difícil atuar com limitação EPI´s, e mais do que isso, lidar com a os medos e as expectativas de 100 idosos”.

Rennó conta que já passam de 10 pessoas infectadas onde ele trabalha. “Em meu local de trabalho tivemos 11 casos confirmados de usuários, além de três profissionais. Eu não fui contaminado, mas lidar com o risco de ser contaminado e a pressão do contágio é sufocante”.

Diante desta situação que afeta toda uma categoria de agentes de saúde, ele ressalta que não há muita preocupação do Estado sobre a condição da saúde mental dos profissionais que trabalham na linha de frente de atendimento da população mais afetada pela pandemia. 

“Não há cuidado por parte do poder público, a abertura do comércio, a volta das atividades diárias baseadas em absolutamente nada é uma prova do descaso com os profissionais da linha de frente, com os que perderam sua vida”.

O psicólogo desconhece programas do poder público para atender os profissionais, mas ressalta que a sociedade civil está mais atenta a esse cenário. “Do poder público não tenho conhecimento não, o que existe são ações de grupos de apoio da sociedade civil. Eu participo de um coletivo de psicanálise que oferece atendimento a população periférica, além de profissionais da saúde, educação e assistência social”, conta ele.

Ele enfatiza que ações e projetos como a Clínica de Psicanálise Periférica tem a importante função de desmistificar a visão que se tem sobre o cuidado mental. “É de extrema importância projetos desse cunho, ações como estás levam ao território propostas que visam descolonizar a visão de saúde centrada no médico. E mostrar que é possível desmistificar o cuidado com a saúde mental”.

Para a articuladora cultural Yasmin de Souza, que atua na Ocupação Mateus Santos, em Ermelino Matarazzo, essa parceria com a clínica surge num momento de grande importância para o território. “Várias pessoas já compartilharam e até antes de eu postar as pessoas já vieram falar comigo, então eu já fui encaminhando pessoas antes mesmo do flyer e da divulgação está em curso. Então a necessidade foi evidente, não só do território de Ermelino, mas de outras pessoas que se interessaram e foi virando uma rede de apoio”.

A articuladora cultural conclui que esta parceria também promove uma mudança de cultura entre os moradores. “O que muda no território é principalmente o olhar da comunidade em si. Eu falo no geral, enquanto periferia, que a gente não precisa que o tratamento psicológico é banal, enfim essa contextualização de que as pessoas que se trata psicologicamente são doentes, e que esse tratamento é algo elitizado e burguês que de fato é, então quando se acessa esse lugar acho que as pessoas começam a ter um olhar menos preconceituoso, do que foi implantado pra gente como tratamento”, afirma.

O psicanalista João Luis Sales Sousa, 24, morador do Jardim São Carlos, na zona leste, conta que o projeto nasceu com o objetivo de democratizar o acesso à saúde mental nos territórios periféricos. “A Clínica Periférica de Psicanálise nasce a partir de um ato político que perpassa desde o campo psicanalítico até o campo social. As subversões que são propostas pelo coletivo, como por exemplo, o atendimento em um espaço público e a gratuidade do serviço, nos endereça para o objetivo da democratização da clínica psicanalítica e a ampliação do acesso desse serviço de escuta”.

Ele acredita que o projeto rompe com paradigmas tradicionais. “Visto que estamos quebrando com diversas práticas tradicionais da psicanálise, como pagamento em dinheiro e o setting, permanecemos com um posicionamento crítico a outras práticas e teorias, principalmente aquelas que não englobam a população que atendemos”, coloca. 

“A psicanálise, então, necessita de um desenvolvimento teórico que rompa com certos aspectos coloniais e elitistas, que tenha em vista noções sociais, que busque englobar a sociedade brasileira atual, com sua diversidade e questões culturais”.

explica o psicanalista.

Sales também pontua a importância da psicanálise em um momento como o que estamos vivendo. 

“A psicanálise nestes momentos de pandemia precisa tomar certo cuidado para não cair em uma posição de generalização dos fatos sociais e consequentemente, ter uma postura de saber absoluto sobre os sujeitos e a sociedade, tendo isso em vista, o papel da psicanálise é a partir de um serviço de escuta para o sofrimento psíquico que talvez possa estar latente em um momento de crise como o que estamos vivenciando”, reflete. 

Ele ainda coloca que a situação em cada sujeito está inserida, reflete diretamente nas desigualdades e sofrimento de cada individuo. “Já que o coletivo tem o intuito de fazer o atendimento a uma determinada população, que está em vulnerabilidade social, uma população periférica, a situação de pandemia pode intensificar as desigualdades sociais e o sofrimento do sujeito”, diz.

“Podemos afirmar que toda uma dinâmica relacional é afetada no território a partir dessa mudança de lógica, onde os sujeitos que ali residem, possuem a abertura e principalmente o direito de ocupar tantos os espaços físicos quanto os espaços simbólicos de uma análise, sem necessariamente precisar pagar por isso. Além disso, quando a psicanálise propõe se deslocar de um lugar elitista para adentrar nas periferias brasileiras, ela abre um espaço de escuta e consequemente de um cuidado psíquico para um recorte da população que não tem acesso a esse tipo de serviço”.

Continua falando sobre a importância para o território e o que muda com o acesso de um atendimento gratuito nos bairros periféricos.

O psicanalista finaliza ressaltando a importância de atender profissionais da saúde e assistência social. “possibilitar um espaço de escuta da angústia de profissionais que atuam na linha de frente – proveniente deste período de pandemia – assim como de sujeitos periféricos ainda mais marginalizados em meio às crises nos sistemas econômicos, de saúde e educação”. 

Para ele, trata-se da tentativa de minimizar os impactos de uma opressão imposta pelo sistema capitalista e “reproduzida por políticas governamentais de representantes ditos neoliberais, que buscam acentuar uma individuação dos sujeitos, partindo da premissa meritocracia. Colando a grande massa que são seus principais agentes de manutenção social na condição de explorados em detrimento da sua própria saúde biológica e psíquica”, finaliza.

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