Direitos invisíveis: moradores denunciam estado de abandono nas favelas do Rio Pequeno

O Rio Pequeno é o distrito mais populoso da Subprefeitura do Butantã. É sobre a vida nas Favelas da São Remo e da ‘1010’ que o Desenrola abre a série de reportagens ‘cidade dos direitos invisíveis’, na qual vamos percorrer as periferias e favelas das quatro regiões de São Paulo, contanto histórias de moradores, para entender como é a vida nos distritos que possuem os maiores indicadores de aglomeração de moradias e habitantes durante a pandemia de coronavírus, com base em dados publicados pelo Censo 2010, que completam 10 anos de existência em 2020. 

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Composto por mais de 40 bairros, o distrito do Rio Pequeno está localizado na região oeste da cidade de São Paulo. Os dados produzidos pelo Censo em 2010 revelam que há mais de 12 mil habitantes por quilômetro quadrado morando no território. Além disso, o estudo aponta que o Rio Pequeno é o menor distrito em extensão territorial da Subprefeitura do Butantã com 9,70 km², mesmo assim, ele possui o maior índice populacional da região com 118.459 moradores.

Todos os distritos vizinhos ao Rio Pequeno, que fazem parte da Subprefeitura do Butantã são maiores em extensão territorial, mas possuem um número bem menor de habitantes. Entre eles estão: Morumbi com 11,40 km² e 46.957 moradores; Butantã com 12,50 km² e 54.196 moradores; Raposo Tavares com 12,60 km² e 100.164 moradores; e Vila Sônia com 9,90 km² e 108.441 moradores.

Os dados revelam que o Rio Pequeno possui uma característica comum nas periferias de São Paulo: há um grande número de moradores que se auto-organizam em moradias irregulares, que demandam da existência de políticas públicas para acessar condições mais humanas e dignas de existência, mas que ao mesmo tempo são invisíveis para o Estado.

Dez anos depois da publicação destes dados, os moradores das favelas da ‘1010’ e São Remo denunciam que as condições de vida nas favelas não mudam, porque eles não são enxergados pelo poder público. “Moro aqui desde sempre, e é difícil. É difícil morar na comunidade porque não tem auxilio nenhum, as pessoas não nos enxergam, tem casa com um metro quadrado que moram 6, 7 e até 8 pessoas dentro de vielas. Como se mantém essas pessoas em casa, e ainda faltando alimentação, material de higiene e até água?”, questiona Marcos Antonio dos Santos, mais conhecido no território como Bulula, 45, morador da favela da ‘1010’.

Outra moradora da favela São Remo é a dona Maria Das Dores Bezerra, 42 anos, que mora no território há mais de dez anos. Segundo ela, o número de moradias irregulares só aumenta, juntamente com a vulnerabilidade dos moradores. “To no bairro a mais de dez anos e aqui só aumenta as moradias que são bem precárias, conheço famílias de seis pessoas que moram em um cômodo só. É bem precária, é bem apertadinho.”

Dona Maria complementa, descrevendo que o quintal das casas abriga banheiros externos e a passagem da viela acaba se tornando um local de encontro com a porta do outro vizinho. “Tem gente que não tem banheiro dentro de casa, é do lado de fora, é tudo bem apertado. A porta de uma casa ta na frente de outra porta, dentro de uma viela, é bem apertada.”

A partir dos dados disponíveis no Censo 2010, o Mapa da Desigualdade publicado pela Rede Nossa São Paulo em 2017 mostra que na Subprefeitura do Butantã havia quase 25 mil casas situadas em favelas, um indicador que ilustra claramente a condição de aglomeração de moradores na região. A pesquisa também apontou que a quantidade de moradias cresceu em relação ao ano de 2008, período no qual o distrito possuía mais de 22 mil casas localizadas em favelas.

Viela na entrada da Favela da São Remo, no Rio Pequeno. (Foto: Reprodução Facebook)

“Urbanização de favela é tentar organizar uma vida que tá fora do padrão” 

Os depoimentos dos moradores entrevistados pela nossa reportagem ilustram bem o tamanho do problema apresentando pelos dados produzidos pelo Censo em 2010. Como já se passaram 10 anos, esses indicadores podem estar bem maiores, devido ao aumento da vulnerabilidade dos moradores das periferias e favelas, devido ao desemprego, e a redução de investimento em serviços sociais estruturantes, como saúde e educação.

Segundo a mestranda em Planejamento Urbano pela FAU-SP, Gisele Brito, a políticas públicas de moradia e de urbanização das favelas seriam bem vindas se o Estado soubesse elaborar e implantar. “As questões de moradia estão em pauta a pelo menos uns 40 anos, o problema é que o Estado dá soluções erradas, ou soluções que as moradias continuam sendo tratadas como mercadorias, e aí não tem como resolver, o programa Minha Casa Minha Vida, por exemplo, é o maior programa de habitação que existe. 

Foram construídas mais de 2 milhões de casas e ainda assim, enquanto estavam sendo construídas essas habitações, o número de déficit habitacional aumentou”, aponta ela, enfatizando que o problema habitacional nas favelas nunca vai ser resolvido enquanto for tratado como mercadoria, e não como um direito à cidade e direito à moradia.

Para Brito, a urbanização das favelas é uma conquista histórica de muitos movimentos sociais, que conseguiram levar asfalto, água e luz para os bairros favelados. Isso se dá até hoje pautando as condições precárias de moradia e a questão do saneamento básico dentro da cidade.

Ela também explica que a remoção dos moradores não é uma solução para esse problema, mas que é importante compreender e reconhecer o modo de vida dos moradores, que não segue padrões socioeconômicos tradicionais. “Urbanização de favela é tentar organizar uma vida que tá fora do padrão.”

As considerações da pesquisadora têm forte conexão com o projeto de lei nº 619/16 que regulamenta o Plano Municipal de Habitação na cidade de São Paulo, no qual os objetivos estratégicos seguem a seguinte proposta descrita na página cinco do documento.

“Um dos aspectos mais importantes da política habitacional é sua diversidade. Os desafios a serem enfrentados são variados e pressupõem ações específicas para cada caso. Não se pode oferecer para uma favela consolidada há décadas a mesma política que se ofereceria para outra em situação de risco iminente, assim como não são problemáticas semelhantes, por exemplo, a da população em situação de rua, de moradores de cortiços, ou de famílias que residem em loteamentos distantes, na periferia. Cada realidade enseja uma ação diferente do Poder Público, uma integração específica com as políticas urbanas, uma parceria própria com outras secretarias ou subprefeituras.”

“Como que faz quando tem detergente e não tem água, quando tem água e não tem detergente?”
 

A Coalizão Pelo Clima, um grupo de coletivos que promovem debates e ações de combate às mudanças climáticas produziu um mapeamento listando os bairros da cidade de São Paulo que estão sendo atingidos pelo corte água em determinados horários do dia. No relatório, as duas favelas da zona oeste, tanto a ‘1010’ quanto a São Remo são registradas.

Os moradores afirmam que é mais um ponto que interfere na quarentena e no cuidado para não ser contaminado pelo novo coronavírus. “Como que faz quando tem detergente e não tem água, quando tem água e não tem detergente? Para os moradores daqui a água acaba toda noite, não dá nem para tomar banho antes de dormir e continua as campanhas para lavar as mãos e manter tudo limpo. É mais uma coisa que mostra que a gente tá sendo esquecido e isso afeta a nossa existência diariamente”, alerta Bulula.

Dona Maria diz que o abastecimento de água no território segue um padrão de horário para ser interrompido e para ser restabelecido. “Falta água todo dia, mais ou menos umas 21h da noite e só volta entre 5h e 7h da manhã. Eu tenho muito medo, tem que fazer tudo que usa água cedo e separar um balde de água para deixar caso precise né? Eu tenho filha pequena daí é complicado, eu to com muito medo de ser contaminada”, desabafa.

“A gente sabe o que tamo vivendo, então precisamos nos ajudar” 

Devido à ausência programada do Estado nas favelas do Rio Pequeno, os moradores compreenderam há muitos anos que a redução das desigualdades depende também da solidariedade de uns com os outros. Por isso, eles começaram a se organizar para coletar doações de alimentos e produtos de higiene, como forma de combater a contaminação de coronavírus em seus territórios.

“A gente que tá aqui sabe o que tamo vivendo, então precisamos nos ajudar, eu to coletando doação e levando para várias famílias todo dia”, diz Bulula. Ele valoriza as ações solidárias que estam acontecendo no bairro e informa um endereço para quem quiser ajudar. “O lugar de doação aqui é na favela da 1010, na Rua Cleon Mário Gacceone, 279. Temos que nos ajudar e ajudar as famílias que precisam mais, salvar nosso bairro”, finaliza o morador.

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