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Assistência Social: o direito à acolhida

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Embarque no Direito

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Anos 1990: quantos amigos você perdeu para a violência nessa época? Infelizmente, as coisas eram mais difíceis nas periferias de São Paulo e crianças e jovens tinham menos oportunidade do que hoje.



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Foto: Pablo Pereira

Do jornal Embarque no Direito.
Reportagem de Ana Luíza Araújo, Rebeca Motta e Riviane Lucena. Fotos por Pablo Pereira. Ilustração por Gustavo Domingues. Edição de texto por Thiago Borges
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Anos 1990: quantos amigos você perdeu para a violência nessa época? Infelizmente, as coisas eram mais difíceis nas periferias de São Paulo e crianças e jovens tinham menos oportunidade do que hoje. A vida ainda não tá fácil, mas algumas coisas começaram a mudar. E muito disso tem a ver com o fortalecimento das políticas de Assistência Social.

No lugar do assistencialismo historicamente praticado em regiões pobres, em que grupos poderosos controlam a população com a manutenção da miséria, a Constituição Federal de 1988 assegura a Assistência Social como um direito “a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social”. O objetivo é combater a pobreza e as desigualdades, e garantir as condições mínimas para que qualquer pessoa possa exercer outros direitos. Muita gente não sabe, mas esse direito se faz presente em nosso dia a dia de diferentes formas, como: Conselho tutelar; o acolhimento a moradores em situação de rua; ou a proteção a vítimas de violência, especialmente crianças, adolescentes e mulheres.

Assim como a gente busca o posto de saúde quando está doente ou vai para a escola para ter aulas, a Assistência Social acolhe e trabalha a relação entre as pessoas. “E a relação precisa de investimento, para que a gente não fique só na distribuição de cesta básica ou como lugar em que as pessoas vão fazer o Bolsa Família, pois não é só a condição financeira que vai superar a exploração que as pessoas vivem”, explica a assistente social Kelly Melatti. “Eu não posso achar que vou acolher uma pessoa e outra não. Meu trabalho tem que ser de acolhida porque isso é um direito, não é uma deliberação minha enquanto indivíduo”, completa.

No Brasil, esse direito ainda é visto como um favor, uma obra de caridade de alguém iluminado. “Ela é muito vista como ‘coisa pra pobre’. Por onde tenho andado gosto de desmistificar que não é uma política pra pobre, mas pra quem precisa, pois a violência atravessa toda a sociedade”, diz Regina Paixão, que compõe o Fórum de Assistência Social de São Paulo.

Depois de avançar nas últimas décadas com a criação da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), as políticas da área correm risco por conta do congelamento dos investimentos sociais por 20 anos decretado pelo governo do ex-presidente Michel Temer em 2016 e os cortes na área promovidos pelo prefeito Bruno Covas. Para Kelly, o fortalecimento de espaços de convivência têm relação direta com a violência pois o convívio entre diferentes promove a possibilidade de proteção social. E se há uma diminuição nos investimentos em Assistência Social, o risco de violência aumenta.

Da violência para a acolhida

Regina testemunhou a época em que a região entre Jardim Ângela, Jardim São Luís e Capão Redondo ocupou o primeiro lugar no pódio da violência mundial e era chamada de “triângulo da morte. “Estava se tornando comum passar em cima de corpos na periferia”, lembra.

Cansado de ser chamado quase todos os dias para enterrar jovens no Cemitério São Luís, o Padre Jaime Crowe (do Jardim Ângela) se articulou com o Padre Nicolau (do Capão) e com a população local para criar o Fórum em Defesa da Vida. A partir do diálogo com moradoras e moradores, o grupo entendeu que a violência estava relacionada a vários fatores que afetavam quem vivia na região: desde a fome até o uso abusivo de álcool e drogas, do desemprego à falta de creches e postos de saúde.

Para mudar essa realidade, o Fórum em Defesa da Vida concluiu que era necessário cobrar medidas do governo para garantir os direitos do povo. Para chamar a atenção pra isso, desde então todo dia 02 de novembro (Dia de Finados), acontece a Caminhada pela Vida e pela Paz, que reivindica a presença do estado na periferia com políticas públicas.

E com essa mobilização e todo destaque na mídia para os problemas da região, a população conseguiu atrair o poder público. Com muita luta, os moradores conquistaram creches, escolas, CEUs como o Guarapiranga e Valo Velho, terminais de ônibus, postos de saúde e até o Hospital M’Boi Mirim. Mais do que isso, a Assistência Social ganhou um grande reforço na região. Se antes muitas das ações eram feitas por igrejas, associações de moradores e organizações não-governamentais (ONGs), a partir da mobilização a Prefeitura de São Paulo implementou serviços como os centros de convivência de crianças, adolescentes, jovens e idosos (os CCAs, CJs e NCIs), Centros de Defesa e Convivência da Mulher (CDCM), entre outros.

A cidadania transforma vidas

Quando garantido, o acesso às políticas públicas de Assistência Social transforma vidas nas periferias. É o caso de Cleuza Maria de Almeida, que há 13 anos perdeu o marido e , no final de 2017, sua mãe morreu. Morando sozinha, Cleuza caiu em depressão. Graças a algumas vizinhas, ela conheceu o Núcleo de Convivência para Idosos (NCI), que é um serviço de proteção social de convivência para os idosos com idade igual ou superior a 60 anos em situação de vulnerabilidade e risco pessoal e social.

Diferentemente das casas de repouso e asilos, o NCI abre as portas durante o dia para o convívio da terceira idade e conta com uma série de atividades. Cleuza faz bordados, pinturas, ginástica, aula de dança com o grupo AfroMix e, aos sábados, tem reuniões muito fortalecedoras com psicólogo e psiquiatra. “O convívio é muito bom, porque todos os idosos se ajudam, estão sempre lá um pelo outro. E isso me faz muito bem, falo de todo meu coração”, diz ela.

Com 63 anos atualmente, ela vive há 50 no Capão Redondo e agora desempenha um papel importante na região: recentemente, foi eleita por suas colegas como uma das delegadas dos NCIs das proximidades, e com esse título ela tem a possibilidade de buscar melhorias para os espaços, como mais atividades e oficinas. No NCI, Cleuza saiu da depressão e encontrou felicidade, tranquilidade e paz consigo mesma.

Outros serviços de convivência muito utilizados e presentes nas quebradas são os Centros para Juventude (CJ) e para Crianças e Adolescentes (CCA). Morador do Riviera, de família nordestina como muitos que vivem na região, quando tinha 14 anos Carlos Alberto de Souza Almeida ouviu falar no CJ pela primeira vez. Alguns amigos da rua onde ele morava faziam um curso de panificação por lá, onde também podiam comer e ganhavam uma bolsa-auxílio de R$ 60 por mês. “E ainda podiam jogar futebol”, lembra Carlos, que também se matriculou para participar das atividades do CJ.

Esse espaço abriu a cabeça de Carlos – principalmente com a oficina de cidadania que, segundo ele, mudou completamente sua vida e a forma de pensar o mundo e o futuro. “Eu entendi que dava para transformar o mundo de alguma forma”, ressalta Carlos, que aos 15 anos já estava participando ativamente dos fóruns que reivindicam direitos para crianças e adolescentes. Não era fácil: para participar das reuniões, ele pegava o ônibus sozinho, passava por baixo da catraca dividia um cachorro quente de R$ 1,50 com 3 amigos.

Aos 17 anos, Carlos entrou na faculdade de Propaganda e Marketing por meio do ProUni, programa do governo federal que concede bolsas em universidades particulares. E aos 18, ele deixou de ser um frequentador para se tornar um trabalhador da Assistência Social. Foi quando começou a atuar como educador em um Centro de Convivência para Crianças e Adolescentes (CCA), por onde ficou por dois anos.

Atualmente, aos 25 anos, ele trabalha na Sociedade Santos Mártires, uma organização que administra vários outros serviços da Assistência Social na Zona Sul de São Paulo. Também é presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), conselheiro estadual de direitos humanos, conselheiro construtivo da Associação Brasileira dos Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude; e está no Comitê Nacional do Combate aos Abusos de Crianças e Adolescentes. “A história de vida se mistura e se confunde com o trabalho”, diz ele.

Toda essa construção que teve início em um simples curso no CJ levou Carlos a lugares que ele nunca pode imaginar, ao mesmo tempo em que não se esquece de onde veio e as necessidades que esse lugar ainda tem. E para ele, com o congelamento do teto de gastos tem se tornado mais difícil atender essas demandas. Por isso, a participação pública é importante. Mas antes as pessoas precisam conhecer seus direitos.

Pra conviver e crescer

Muitos serviços da Assistência Social promovem a convivência entre crianças, adolescentes, jovens e idosos. O CCA, por exemplo, oferece atividades para crianças e adolescentes de 6 a 14 anos e 11 meses que estão em alguma situação de “risco” físico ou psicológico. O público pode contar com atividades recreativas, culturais e esportivas para gerar aprendizagens com a interação entre elas.

Já o CJ é voltado a adolescentes de 15 a 17 anos e 11 meses, e também oferece atividades recreativas culturais e esportivas com a intenção de gerar interação e aprendizagens. Com público ampliado, o Centro de Desenvolvimento Social e Produtivo (CEDESP) atende jovens e adultos a partir de 15 anos com programas que melhoram a formação profissional, ajudando em diferentes habilidades e preparando para conquistar e manter o emprego e a independência.

O NCI recebe quem tem mais de 60 anos com atividades socioeducativas, levando à construção e à reconstrução de um novo olhar para suas histórias e experiências individuais e coletivas, na família e no lugar onde vivem. E o Centro de Convivência Intergeracional (CCINTER) mistura públicos de diferentes idades a partir dos 06 anos com o intuito de promover troca de experiências e maior envolvimento social, cidadania e igualdade.

Para conhecer e obter mais informações sobre esses e outros serviços, basta entrando em contato com Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Encontre o mais próximo de você. No mapa abaixo, indicamos o endereço de cada um desses espaços. Confira:

Esta reportagem faz parte do projeto #NoCentroDaPauta, uma realização dos coletivos Alma Preta, Casa no Meio do Mundo, Desenrola e Não me Enrola, Imargem, Historiorama, Periferia em Movimento, TV Grajaú, Dicampana e Nós, Mulheres da Periferia, com patrocínio da Fundação Tide Setúbal.

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