REPORTAGEM

Moradores afirmam que transporte público precário nas periferias de SP é racismo

Edição:
Ronaldo Matos

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Entrevistamos três trabalhadores que moram nas periferias das regiões norte, oeste e sul de São Paulo que chegam a passar cerca de 5 horas dentro do transporte coletivo, muitos deles em condições precárias, gerando uma série de desgastes físicos e emocionais nos passageiros.



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Roseli Silva passa todos os dias pela Estação Osasco da CPTM. (Foto: Roseli Silva)

Uma longa espera que varia de 20 a 40 minutos, muitas vezes embaixo de sol e chuva, ônibus em situações precárias, superlotação e aumentos abusivos nas tarifas de ônibus são fatos corriqueiros que fazem parte da rotina de quase 9 milhões de pessoas que passam às vezes mais de 5h por dia, dentro do ônibus, indo de um ponto ao outro da cidade para trabalhar, estudar e realizar compromissos diversos. Mas afinal, por que essa realidade ainda faz parte da vida de quem mora nas periferias e favelas de São Paulo? 

Eu fico praticamente 5h nesse caminho todo dia, é muito tempo

Roseli da Silva, moradora do bairro João XXIII, zona oeste de São Paulo

Quem vive essa rotina todos os dias é Roseli da Silva, 53, moradora do bairro João XXIII, zona oeste de São Paulo. Ela trabalha como empregada doméstica em Santana de Parnaíba. Ela pega o ônibus que sai do seu bairro todos os dias às 5h30, vai até o Terminal Pinheiros e lá embarca no trem, indo em direção estação da CPTM do município de Osasco, onde ela faz integração e depois vai até a cidade de Carapicuíba. Ao chegar lá, a moradora pega mais um ônibus, dessa vez intermunicipal para chegar ao seu trabalho às 08h da manhã. Só nesse trajeto de ida ao trabalho, ela gasta 2h30.

“Eu entro às 8h no trabalho. Indo e voltando eu fico praticamente 5h nesse caminho todos os dias, é muito tempo né, daria para fazer tanta coisa”, exclama a moradora, reafirmado a quantidade de horas gastas com o deslocamento de ida e volta da casa para o trabalho.

Roseli ressalta que as condições do transporte no bairro onde mora não corresponde com o valor pago pela tarifa que só aumenta. “Moro no bairro do Jardim João XXIII, e eu considero como um bairro bem precário, conduções são lotadas, muito longe do centro, falta muita coisa, tem bastante linha de ônibus, eu moro bem próximo ponto final do 7545, mas os ônibus são bem ruins, cheios de mais, tem vezes que não tem nem como entrar, ainda mais se tiver indo para o centro de manhã”, relata a moradora.

Ela lembra que tinha uma linha de ônibus que era boa no bairro, com a numeração 771P, o coletivo fazia o itinerário do Jardim João XXIII até o Hospital das Clínicas, mas aí o São Paulo Transporte (Sptrans), empresa pública que gerencia os transporte público na cidade de São Paulo reduziu o trajeto, aumentando o número de paradas e embarques dos passageiros. “Alteraram a linha e ela só vai até o Terminal Pinheiros. O transporte já não é bom né, aí eles fazem ser pior mudando as rotas e tirando o ônibus”, afirma.

Serviço Público

O transporte público é um direito social garantido pela Constituição Federal, e aqui na cidade de São Paulo, esse serviço atende diariamente mais de 8,7 milhões de pessoas de acordo com a São Paulo Transporte (Sptrans), empresa pública que gerencia cerca de 1.300 linhas de ônibus na cidade e conta com 129 km de corredores e 500 km de faixas exclusivas para ônibus.

A precariedade no transporte público é uma forma de racismo?

Roseli se autodeclara uma mulher negra e enxerga que a maior parte da população dentro do transporte público é preta. “Eu enxergo que somos nós pessoas pretas as que mais usam o transporte, principalmente para ir trabalhar, e é um desgaste sim, você fica cansado, você perde muito tempo esperando, você perde muito tempo dentro dele, chega a faltar tempo no final do dia de tanto que se perdeu no transporte público. Às vezes a condução cansa mais que o trabalho”, avalia a moradora.

Ao observar a cor dos trabalhadores dentro do transporte público, ela ressalta que ocorre um descaso com os passageiros, devido à má qualidade do serviço público. “O transporte público na nossa cidade é muito caro, para as condições que ele está: ônibus lotado que quebra constantemente, são velhos, falta muito para ter um transporte bom, tá muito longe de ser bom”, enfatiza.

Descrente dos resultados das urnas neste final de semana, a moradora destaca que não acredita que os candidatos à prefeitura de São Paulo farão de fato algo pelos trabalhadores que dependem do transporte. “As eleições estão aí, eu não estou a par de nenhuma proposta, não é algo que eu consiga entender direito e pesquisar ou ver na televisão, eu não quero votar em mais ninguém, eu não vejo que melhora, acho que é muita promessa e nada para gente de fato”.

Com uma consciência coletiva, de pensar no bem estar do próximo e não somente de si mesma, Roseli revela como seria o transporte público dos seus sonhos, que faria sentido na rotina da vida dos trabalhadores e moradores das periferias e favelas. “O transporte público do meu sonho seria que todos ficassem sentados em poltronas confortáveis, sem ter que pagar tão caro, sem a catraca igual aqueles ônibus antigos sabe como os circulares. E que tivesse ar condicionado, tivesse estrutura para a gente que volta cansada do trabalho, e que de alguma forma eu, por exemplo, não tivesse que pegar tantas conduções para chegar até meu trabalho”.

Roseli finalza a jornada para chegar ao trabalho embarcando em um ônibus intermunicipal. (Foto: Roseli Silva)

As pessoas negras são as que mais utilizam o transporte público porque a gente é a maioria da classe trabalhadora

Bruna Simões, moradora do bairro Imirim, zona norte de São Paulo.

Do outro lado a cidade, reside Bruna Simões da Silva, 30, mo bairro Imirim, zona norte de São Paulo. Ela trabalha como técnica em pedagogia no Serviço de Assistência à Família no Domicílio (SASF) no bairro Jardim Peri. No trajeto de ônibus ela leva apenas 15 minutos para chegar ao seu trabalho, mas tem que sair de casa às 6h30 para chegar lá às 8h, porque este ônibus, segundo a moradora demora de 30 minutos a 1h hora para passar.

“O caminho que eu faço para o meu trabalho é um caminho curto. Mas é aí que já tem uma das questões que implica negativamente no transporte público do meu bairro. Eu trabalho em outro bairro periférico aqui da zona norte, que é o Jd Peri, para eu conseguir chegar ao meu trabalho às 8h, eu preciso sair de casa às 6h30 no máximo, pego um ônibus que é o Cohab Jardim Antártica para chegar até o Peri. Eu pego esse ônibus no contrafluxo, então tem dias que eu sou a única passageira, porque estou fazendo o caminho contrário dos outros trabalhadores, só que essa linha tem apenas sete ônibus, então o intervalo entre um e o outro chega a ser de 30 minutos e às vezes pode chegar até 45 minutos a 1 hora”.

A partir de suas vivências como usuária, a pedagoga enxerga que o Estado está sucateando o transporte e se aproveita disso. “Eu acho que o Estado tira bastante proveito do transporte público, mas ele pouco reverte para melhorar, e dentro das periferias ainda, não existe nenhuma preocupação com isso, e sem contar que a pauta do transporte é muito lucrativa, existem várias formas de desviar dinheiro público a partir dessa pauta, e, além disso, é mais uma forma de explorar a classe trabalhadora, por exemplo, com o absurdo da tarifa que pagamos aqui que está no valor de 4,40, eu entendo que é muito lucrativo e o Estado se apropria disso em vários momentos”.

Atenta a questão racial presente no seu cotidiano, a moradora afirma que a maioria das pessoas que utilizam o transporte público são trabalhadores e trabalhadoras negras. “Eu me considero uma mulher negra, e as pessoas negras são as que mais utilizam o transporte público, porque a gente é a maioria da classe trabalhadora, o transporte público desgasta sim os trabalhadores, então, por exemplo, eu te disse que eu gasto 15 minutos até meu trabalho, mas já que a linha que me atende tem poucos ônibus eu preciso me organizar para sair da minha casa com uma 1 hora de antecedência para chegar no horário certo ao trabalho, por que é desgastante? Porque eu preciso acordar mais cedo, e passo muito tempo parada no ponto esperando embaixo de chuva e sol, é desgastante sim”.

Para ela, existe uma questão ligada aos fatores de raça e gênero muito forte no transporte público de São Paulo. “Existe sim uma relação de raça e gênero com o transporte público, eu entendo que desde a pessoa que trabalha no transporte até quem utiliza, são pessoas que são consideradas minorias por esse Estado, e aí tá todo mundo sofrendo com a condição desse transporte, seja enquanto trabalhador da empresa, seja como usuário, existe relações de gênero também tanto que no transporte público que várias mulheres são abusadas e assediadas diariamente, mais uma vez reforçar o quanto machista é esse Estado que a gente vive”.

A gente trabalha tanto e se mata e nem no transporte conseguimos ter uma qualidade de vida

Gerson Abad, morador do Parque Santo Amaro, no distrito do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo

Morador da zona sul de São Paulo, Gerson Abad Cesari Hinojosa, 23, reside no Parque Santo Amaro, no distrito do Jardim Ângela, região onde os moradores expõem constantemente nas redes sociais a demora para conseguir embarcar em algumas linhas de ônibus.

Todos os dias, o morador atravessa a cidade para ir até o município de Francisco Morato, onde ele trabalha como técnico de enfermagem. Sua rotina começa às 3h30, quando ele acorda para chegar às 7h no local de trabalho. Ao vivenciar esse trajeto todo dia, o morador acredita que o transporte público é uma forma de torturar os passageiros.

“O transporte é um desgaste sim, eu, por exemplo, tenho que estar de pé 3h30 da manhã para conseguir chegar à cidade de Francisco Morato às 7h, é uma escolha minha? Sim, porque não tem emprego onde eu moro e tenho que ir para outra cidade conseguir isso, eu viajo até outra cidade todo dia para poder trabalhar, as pessoas que trabalham lá normalmente moram extremamente longe de seus trabalhos e têm que fazer grandes viagens, os trens são lentos, eu, por exemplo, uso a linha rubi, essa é uma linha que não dá para confiar, é muito lenta, eu nunca sei se vou chegar no horário certo, sempre estou correndo”, avalia Abad.

O técnico em enfermagem volta no tempo e relembra a experiência de circular pela cidade quando era estudante e tinha o passe livre, e como esse direito foi sumindo e restringindo o acesso das pessoas. “Sempre usei o passe livre porque sempre estive estudando e para mim era maravilhoso, quando era 24h e dava para pegar mais ônibus e metrôs, mas foi mudando as gestões, até chegar agora onde é limitado e não é mais ‘passe livre’, não temos liberdade para passar, é passe limitado”, diz o morador.

Dentro da sua condição de usuário contínuo de ônibus, trem e metrô, Abad também enfatiza que o aumenta das tarifas afeta muito o trabalhador. “A passagem com certeza é a pior coisa do transporte público, tem os horários de pico, eu acho que eu nunca conheci outra realidade, não consigo pensar em um transporte bom, porque nunca vivi ou vi isso”.

O técnico em enfermagem também sonha com a possibilidade de ter no futuro um transporte com melhorias básicas, que melhorasse a qualidade de vida e no bolso dos moradores. “A gente trabalha tanto e se mata e nem no transporte conseguimos ter uma qualidade vida, para mim o transporte público ideal seria aquele que a gente não tivesse apertado independente do horário, que desse para sentar, onde o limite máximo seria ter passageiros sentados e teria ônibus passando um atrás do outro, queria que não houvesse aglomerações, que o transporte fosse acessível a todos de verdade, a passagem não excluísse tanto assim as pessoas”.

Ele finaliza afirmando que “deveria existir alguma forma das pessoas de baixa renda acessar esse transporte de forma pública”, opina ele, fazendo uma referência à gratuidade no transporte, se ele fosse realmente público e permitisse o livre acesso à cidade.

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