“A pandemia fez o medo se tornar presente no meu dia a dia”, afirma moradora do Jardim Peri

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Confira a primeira entrevista da série Relatos LGBTQIA+, na qual o Desenrola vai mostrar os impactos físicos e mentais causados pela pandemia de coronavírus na rotina de moradores de territórios periféricos da cidade de São Paulo.

Há seis anos, Grazielia Pereira, 28, moradora do Jardim Peri, bairro localizado no distrito da Cachoeirinha, zona norte de São Paulo, saiu da sua cidade natal, em Presidente Tancredo Neves no interior da Bahia, com o objetivo de se desprender das privações que sua cidade causava em seu corpo negro e na sua identidade sexual lésbica.

Hoje ela prefere não se rotular para entender suas afetividades de forma livre. No entanto, a estudante de jornalismo foi intensamente afetada pela pandemia de coronavírus, tendo a sua liberdade e a saúde física e mental afetada diretamente pela dificuldade de transitar e viver a cidade.

“A pandemia fez com que o medo se tornasse elemento presente no meu dia a dia. Saio todos os dias para trabalhar, trabalho como atendente de telemarketing, e todo dia é recorrente o pensamento que eu voltarei para casa infectada”, conta Pereira.

Dentro do município de São Paulo há apenas três Centros de Cidadania LGBTI+ com sede fixa. Esses espaços públicos têm o objetivo de desenvolver ações permanentes no combate à homofobia e o respeito à diversidade sexual para moradoras e moradores que são lésbicas, gays, bissexuais, travestis, mulher transexual, homem trans e intersexual.

Para quem mora nas periferias da zona leste da cidade, a única opção de atendimento é a unidade Laura Vermont, localizada em São Miguel Paulista. O outro equipamento público é o Luana Barbosa dos Reis, que tem sua sede na Casa Verde, na zona norte. O último Centro de Cidadania LGBTI+ em São Paulo é o Edson Neris, que fica em Santo Amaro, zona sul.

Além das sedes com endereços fixos, a prefeitura de São Paulo percorre a cidade oferecendo esses serviços à população com quatro Unidades Móveis de Cidadania LGBTI+. Mas uma pergunta importante que atravessa a vida da moradora do Jardim Peri é o fato se em ao cenário das desigualdades sociais agravada pela pandemia de coronavírus, esses serviços chegaram até a quebrada para atender os moradores dos territórios periféricos?

Jardim Peri, periferia da zona norte de São Paulo (Foto: Grazielia Pereira)

“Gostaria de dizer que está tudo bem, mas a verdade é que está bem complicado”

Grazielia Pereira

“Gostaria de dizer que está tudo bem, mas a verdade é que está bem complicado, sempre me cobrei muito para me manter sã, e agora me percebo ruir pouco a pouco, tenho me sentido insegura principalmente sobre o futuro, e sobre minha rede de apoio, eu sou meu próprio apoio, sempre foi assim”, define.

Um dos serviços oferecido pelo Centro de Cidadania LGBTI+ é o apoio psicológico e de serviço social, no entanto, Pereira não teve como acessar esses serviços essenciais neste momento da pandemia, devido ao protocolo de isolamento social.

Mas como ela mesma ressalta, espaços de lazer e cultura são bem escassos no bairro onde mora, contudo, os espaços públicos de saúde como as Unidades Básicas de Saúde (UBS) estão cumprindo um papel importante de atender a população LGBTI+ mesmo nesse momento de pandemia. “Gosto muito de morar aqui. O Jardim Peri não é um bairro de difícil acesso, mas no que diz respeito à cultura e lazer não tem muito que oferecer. Sei que aqui tem a UBS e que ela dá assistência para pessoas trans em tratamento hormonal, eles direcionam as pessoas para médicos especialistas”.

A ida e volta para o trabalho vem se tornando um martírio no seu cotidiano, no entanto, essa rotina ainda impacta a constante discussão sobre a autoafirmação da identidade de Grazielia, que para além do fato de ser, também passa por uma série de situações sobre a forma como é enxergada pela sociedade. 

Grazielia Pereira considera o fato de ser negra mais um estigma em meios aos preconceitos da sociedade (Foto: Amanda Barbosa)

“Fazer parte da comunidade sendo negra é carregar mais uma estigma”

Grazielia Pereira

Grazielia Pereira, 28, moradora do Jardim Peri, bairro localizado no distrito da Cachoeirinha, zona norte de São Paulo (Foto:Amanda Barboza)

Neste contexto, a questão racial se torna mais um ponto disparador na sua vivência na cidade. “Fazer parte da comunidade sendo negra é carregar mais uma estigma e também uma alvo maior para situações de preconceito, discriminação e silenciamento. Não é mais fácil ser uma mulher negra dentro da comunidade LGBTQIA+, dentro dela também vivenciamos a solidão e o preterimento. Mulheres negras nunca são as escolhidas nem mesmo por outras mulheres”.

Mesmo diante desses desafios, Pereira segue reafirmando suas origens e faz questão de ressaltar que segue batalhando para sobreviver numa cidade áspera como São Paulo. “Eu sou aquele clichê bem conhecido: uma nordestina batalhando muito para sobreviver em São Paulo. Desde que cheguei aqui moro na parte norte da cidade. Apesar de ainda não viver como eu gostaria aqui, tenho uma história de infância e adolescência de muitas privações e ainda não consigo desassociar isso da minha terra natal, por isso sigo firme na decisão de viver nesse lugar, aqui eu enxergo um horizonte, e isso é o que me atrai e me mantém viva”.

Grazielia relembra que já entrou em crises de identidade. Uma delas ocorreu durante o processo de descoberta da sexualidade e compartilha algumas memórias que mais a marcaram sua trajetória. “O que mais me marcou foi uma conversa que tive com mainha, falei para ela que estava namorando uma garota, foi também a primeira vez que ela disse que me ama. Pode parecer estranho para pessoas que cresceram ouvindo isso dos pais, mas na minha família falar de amor era quase um tabu”, revela.

Após essa experiência de troca de afeta com sua mãe, a moradora do Jardim Peri recorda a importância deste acontecimento na sua vida afetiva. “Isso abriu portas para um sentimentalismo que eu ainda não tinha vivenciado com minha mãe, e hoje é mais frequente ela falar que me ama. É importante falar que meus pais são casados. Não mencionei o meu pai porque nunca conversamos sobre isso, a dinâmica da nossa família é que mainha é a porta-voz de tudo, então foi ela quem falou com ele sobre meu namoro e todo o resto. Ele e eu nos falamos pouco, mas isso sempre foi assim”.

Ela finaliza afirmando que ser não heterossexual é um grande desafio numa sociedade com tantos preconceitos a serem vencidos, como na sua cidade de origem. “A heterossexualidade é compulsória em nossa sociedade. E isso é fato, porém nascer e crescer em uma cidadezinha do interior torna isso muito pior. Então eu demorei muito para entender que eu não me encaixava nesse molde social que o homem nasceu para mulher”.

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