OPINIÃO

A cronologia da covid-19 nas periferias e a crise social

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O abandono de políticas de gerenciamento da cidade e de um plano diretor eficiente custou caro à população em um momento tão perigoso como esse. 

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Jardim Ibirapuera, zona sul, São Paulo 2020. (Foto: DiCampana Foto Coletivo)

São dias difíceis de ler da ponte para cá, muitas coisas deixaram de acontecer para que os dias atuais se formassem em nosso contexto, outras tomaram seu lugar e estamos ainda analisando o que tudo isso significa.

Em uma leitura simples percebemos que a partir da chegada de um vírus vindo de águas bem distantes nossa cidade foi tomada por uma contaminação generalizada de pobreza.

Posso aqui descrever todas as medidas tomadas pelo governo para que pudéssemos evitar o avanço do Covid-19, pois não foram muitas para além de um isolamento tímido, um auxílio financeiro ínfimo e pequenas ações emergenciais na área da saúde, constatamos que o abandono de políticas de gerenciamento da cidade e de um plano diretor eficiente custou caro à população em um momento tão perigoso como esse.

Em 09 de fevereiro de 2020, trinta brasileiros que viviam em Wuhan, epicentro do COVID-19, foram repatriados e ficaram em quarentena por 14 dias na Base Aérea de Anápolis, em Goiás. Enquanto isso, estava me preparando para o início do semestre de atividades no trabalho, carnaval 2020 e como fazer de 2020 um ano melhor que 2019.

Em 21 de fevereiro, do mesmo ano, o Ministério da Saúde, além de Wuhan, amplia a lista de países que poderiam transportar o vírus para o Brasil, Japão, Singapura, Coreia do Sul e do Norte, Tailândia, Vietnã, Camboja, China, Alemanha, Austrália, Emirados Árabes, Filipinas, França, Irã, Itália e Malásia.

No dia 22, o Bloco do Beco, localizado no Jardim Ibirapuera, zona sul de Sampa, leva para as ruas do bairro o bloco de carnaval que sai a 18 anos, nosso carnaval além de parceria com o comércio local, homenageou seu Escurinho do Acordeom e trouxe o tema a rua como direito à cidade. Levamos 5 mil pessoas aglomeradas pela felicidade. Foi um sábado lindo seguido por um after de baile no Bloco do Beco. 

Em 26 de fevereiro, é confirmado o primeiro caso de COVID-19 no Brasil, um paciente de 61 anos vindo da Itália. No dia seguinte, 132 casos suspeitos são monitorados pelo Ministério da Saúde. Até 02 de março, dois casos são confirmados e o epicentro até então é o Hospital Israelita Albert Einstein, onde pacientes doentes recém chegados da lista de países que poderiam transportar o vírus são monitorados.

Bloco do Beco durante o carnaval 2020 no Jardim Ibirapuera. (Foto: Maloka Filmes )

No Brasil nada mudou. Vivemos o carnaval como se nada estivesse acontecendo de fato, e se a memória não me falha nada foi divulgado amplamente sobre a possível entrada do vírus em nosso país. Aqui na periferia nada de boatos sobre o até então chamado coronavírus, esperávamos dias melhores, 2019 foi um ano duro. A eleição do atual presidente, suas ações e a crescente crise do trabalho e da economia em decaída, foi uma nuvem pesada que carregamos. Perdemos direitos, investimento público em políticas da Assistência Social, cultura, no que diz respeito a arte e no que diz respeito a formação brasileira sobre gênero, raça e classe. Nosso orgulho brasileiro via Tweets presidenciais.

Em 05 de março, sobe para 8 o número de casos confirmados de COVID-19, 6 em São Paulo, são no país 636 casos suspeitos, nesse momento sai no Diário Oficial a obrigatoriedade do uso de máscaras pelos profissionais da saúde, álcool gel e luvas. Em 09 de março, são 25 o número de contaminados e 930 suspeitos, em São Paulo são 16.

Em 11 de março, a Organização Mundial da Saúde declarou em fim a Pandemia de Coronavírus no Brasil, três dias após o Ministério da Saúde regulamenta critérios de isolamento e quarentena. Em 17 de março é notificada a primeira morte por coronavírus no Brasil. Nesse momento os baixos investimentos na saúde e a crise financeira começa a ser a base para os números recordes de contaminação que vivemos, o ministério da saúde define que os testes só serão realizados em casos graves. São Paulo lidera os índices de mortes até então.

Esse foi o cenário inicial da pandemia, em maioria não ouvimos ou notamos que isso estava acontecendo, quem escapou tantas vezes da morte como o povo pobre desse país, não se abala com doenças descritas pela mídia ou que vem de gente rica, talvez fosse a fúria divina contra os ricos? Sabemos que não, mas que as lideranças evangélicas relativizaram inicialmente a gravidade da COVID-19. As bases religiosas ocupam hoje o vácuo do Estado e ao mesmo tempo são a principal base Bolsonarista, onde a ambivalência entre a importância do isolamento e a impossibilidade de parar de trabalhar, fortalecem o discurso do atual presidente, sem responsabilizar o mesmo por essa questão.

O que o povo realmente sentiu e se abalou foi com as medidas de isolamento coletiva que foi realizada a partir da constatação que nossa cidade vivia o processo de contaminação comunitária, isto é, o vírus estava dando um rolê por aí. Não bastando, o atual presidente no dia 22 março edita pela calada da noite, propõe a medida provisória que autoriza a suspensão dos contratos de trabalho por até quatro meses e dois dias, não foi aprovada. Logo depois diz que o COVID-19 “era só uma gripezinha”, sim não faz sentido, se era uma gripezinha porque suspender salários por 4 meses?  

Minha primeira publicação sobre o coronavírus foi em 13 de março, sem responsabilidade nenhuma, público um meme que revela os dados de feminicídio maiores que os de coronavírus, não podia imaginar os impactos mortíferos que essa pandemia teria.

Em 16 março, publicamos o primeiro comunicado sério sobre o coronavírus e as atividades de formação e de trabalho são suspensas presencialmente. Todo trabalho se tornou remoto e o medo de contaminação começa a fazer parte de nossas vidas. A doença que até então vinha de uma população que estava fora do país, se aproximava da periferia por meio do trabalho. Sim o contato das populações periféricas com seus, clientes, chefes e supervisores trariam o vírus às periferias.

Nesse momento, dia 27 de março, o número de mortos pelo vírus são 77 pessoas e cerca 3.027 pessoas contaminadas em todo território brasileiro, nada que abale esse povo que acompanha não só esses números, mas também os números de mortos pela polícia, feminicídio, lesbocídio, transfobia, crimes raciais e tráfico de drogas.

Em 1 de abril a Medida Provisória 936, institui o programa emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e impõe medidas trabalhistas complementares para o enfretamento das paralisações pela pandemia do COVID-19, sendo elas, benefício emergencial de preservação do emprego e da renda; redução da jornada de trabalho; auxílio emergencial mensal ao trabalhador intermitente; e acordos coletivos. O Home Office toma conta de nossas vidas e a dupla jornada de trabalho feminina se torna quíntupla jornada, dobrando as jornadas de cuidado dos idosos, crianças e adolescentes que estão todos em casa, mesmo sem nenhum planejamento para atual situação.

Na periferia se isola os idosos para que não se contaminem, sem saber que em 11 de abril um Boletim epidemiológico do Ministério da Saúde apontava que 25% dos óbitos são pacientes fora do grupo de risco e sem fatores de risco.

Nossa cidade continua a ser a mais atingida pelo COVID-19, líder em óbitos, não houve festa junina e o ministério da saúde atualiza essa cronologia afirmando que a primeira morte por Covid-19 aconteceu em 12 de março, uma mulher abriu a lista de mortes, nada emblemática para o quinto país que mais mata mulheres no mundo, com taxa de 4,8 assassinatos a cada 100 mil habitantes.

18 de maio, segunda-feira com 244.052 casos confirmados, o número de óbitos é atualizado para 16.201, somos o terceiro do mundo, ainda na segunda, o número é atualizado 16.792, entre eles, dona Maria Eterna dos Reis de 79 anos, que dedicou mais 30 anos à educação e alfabetização de crianças do Jardim Ibirapuera na Associação de Moradores, local onde hoje, atua a Associação Cultural Bloco do Beco. Um golpe que nunca vamos esquecer, sofremos em conjunto.

Dona Maria Eterna dos Reis, 79 anos, dedicou mais 30 anos à educação e alfabetização de crianças do Jardim Ibirapuera, zona sul de São Paulo. (Foto: Acervo Bloco do Beco)

“O que possivelmente nos resta temer depois de termos ficado cara a cara com a morte e não termos nos rendido a ela? Uma vez que aceito a existência da morte como um processo da vida, quem haverá de ter novamente algum poder sobre mim?

Audre Lourde (Irmã Outsider,2019), p. 16

O vírus chega às periferias forte como um trator, organizações sociais e de base, organizaram estratégias para conter os impactos econômicos das restrições estabelecidas a partir da pandemia, uma delas foi a distribuição de cestas básicas, kits de higiene e formação de uma rede de solidariedade entre todas as organizações sociais da cidade. Pessoas físicas e empresas privadas foram fundamentais para que toneladas de alimentos chegassem a periferia. As medidas de prevenção necessárias para conter o vírus, revelaram a situação do trabalho nas periferias, a maior parte da população se encontra em trabalho informal, que não traziam consigo segurança ou auxílio durante o isolamento. Foi também visto que grande parte da renda familiar nas periferias vinham de mulheres e que grande parte delas na informalidade. Poucas famílias com trabalhos formalizados, e enquanto isso acontecia, a mulher era quem garantia a renda, nesse sentido, verifica-se uma fragilidade mesmo com a empregabilidade formal, pois as mulheres ainda têm os salários mais baixos do mercado.

O empobrecimento das famílias ficou crítico, o Brasil tem o recorde de 13,5 milhões de miseráveis segundo dados divulgados pelo IBGE, em 2019, dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS), que analisa os anos 2012 a 2018. Com isso sabemos que além da pandemia do COVID-19, esses dados tiveram um salto diante do panorama atual.

Com um auxílio emergencial abaixo do salário mínimo, 1.045, sancionado pelo atual presidente em janeiro, estando sempre abaixo da inflação, que não deixa a população sentir qualquer benesse desse aumento, e muito menos se sentir amparado por um auxílio de 600 reais, que chega tardiamente, de forma confusa, trazendo aglomerações e excluindo a população que não tem acesso a internet ou a smartfones.

Entre chuva de lives, uso das redes sociais e demais aplicativos, a exploração do trabalho se tornou mais dura e menos sentida, pois o aplicativo me afasta do comércio, do comerciante e do entregador, dos funcionários, dos estabelecimentos, me alienando totalmente da exploração dessa força de trabalho. A internet não é pública, não é barata e nem eficiente nas periferias, sendo assim um aparato de exclusão social.

Seu Escurinho durante o Carnaval 2020 no Bloco do Beco, Jardim Ibirapuera, zona sul de São Paulo. (Foto: Maloka Filmes)

8 de junho de 2020, seu Escurinho do Acordeom se recupera de COVID-19 e retorna para casa, um mês depois falece devido as complicações do tratamento do vírus e se junta as taxas altas de mortalidade, a gente chora novamente, pois não tivemos chance de ouvir sua sanfona pela última vez, pois não houve vez que fosse última.

Perdas periféricas constantes, com ou sem diagnóstico, enterros com proteção são realizados constantemente em nosso território.

Cemitério São Luiz, zona sul de São Paulo, durante a pandemia de coronavírus em maio de 2020. (Foto: Marcelino Melo | Menino do Drone)

20 de julho, e o Brasil tem o terceiro dia com mais de 50 mil novos casos de COVID-19 em 24 horas, desde o início de março o governo federal registra 2.343.366 infectados, os casos na cidade de São Paulo cresce 74%, cerca de 22.997 óbitos após a reabertura do comércio, estamos em um trem desgovernado, em uma expiação diária. Ontem uma amiga apareceu com COVID-19, sim, do nada, ela estava bem, de repente COVID-19. Sentimos que houve uma criminalização por ela estar contaminada, como se tivesse escolhido, ou tivesse culpa. Me senti mal por identificar mais um mal que sobrecarrega as pessoas, a culpabilização individual.

Espero que ela se recupere, que as famílias periféricas contaminadas pelo COVID-19, ou pela crise econômica se recuperem. Que não se culpem por não ter estrutura física em suas casas para comprimir medidas de higiene ou isolamento, por não entender o que esta acontecendo. Os culpados dormem mesmo sem higienizar as ruas da quebrada em plena pandemia, dormem com milhões de reais em suas contas, mesmo exibindo um auxílio miserável a quem precisa, dormem sabendo da exploração trabalhista, dormem sabendo que tem gente que não tem casa, água potável, saneamento básico, internet e o principal, comida. 

Enfim, como dizia o jornalista e poeta Marco Antonio Iadocicco, Pezão, que partiu antes dessa loucura:

“Nóis é ponte, atravessa qualquer rio” e os rios têm sido cada vez mais perigosos.

“Se eu soubesse naquela avenida,

carnaval que me embalava,

Mesmo que a repressão,

ali tardia

estivessem agourando nosso futuro,

o coração virava a cara,

da agonia de viver fraco.

Hoje olhar triste

sobre a avenida vazia,

Bandeira parada.

Nesta triste alvorada

me resta olhar no retrato dessa vida

A alegria é uma estação sem trilhos,

de milhões de incapazes,

No meu samba metáfora

da aurora que virá.

Anabela Gonçalves

Os dados acima citados foram retirados: GOOGLE.COM: https://g.co/kgs/ZFXa4A

www.ibge.gov.br , BBC NEWS BRASIL em São Paulo: www.bbc.com

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